Monday, May 23, 2011

Trazendo o fantástico para o nível do real, neste livro o filósofo alemão Eugen Herrigel conta a sua extraordinária experiência como discípulo de um mestre Zen, com quem aprendeu a arte de atirar com arco, durante os anos em que viveu no Japão como professor da Universidade de Tohoku. Sem dúvida - como afirma na introdução o professor D. T. Suzuki - um livro maravilhoso que, graças à limpidez de seu estilo, ajudará o leitor do Ocidente a 'penetrar na essência dessa experiência oriental, até agora tão pouco acessível aos ocidentais'.


" D. T. Suzuki diz-nos: A meta do arqueiro não é apenas atingir o alvo; a espada não é empunhada para derrotar o adversário; o dançarino não dança unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, é harmonizar o consciente com o inconsciente.
Para ser um autêntico arqueiro, ou espadachim, o domínio técnico é insuficiente, é necessário transcendê-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente.
Mas o que é o Zen?
O Zen tem as suas origens no Budismo Dhyana que significa literalmente “contemplação” (meditação). É um dos seis paramitas (perfeições, virtudes) do Budismo. Com a passagem do Budismo pela China este adaptou-se ao país de acolhimento e absorve algumas influências locais, designadamente do Taoismo (de Lao-tsé). É na China que o Budismo Dhyana, agora T’chan, atinge a maturidade e é com a passagem para o Japão que ele se “refina” e impregna todo o país onde se fez uma Tradição Viva que subsiste até hoje nas mais variadas formas de arte.
Deitamos mão a outro extraordinário livro escrito por um ocidental, professor e filósofo alemão que viveu durante muitos anos no Japão – Eugen Herrigel – que na sua simples e sublime obra, «A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen», nos transporta para, como ele lhe chamou, a doutrina magna do tiro com arco, o Kyudo.
«Desde a primeira aula, fomos alertados de que o caminho que conduz À ARTE SEM ARTE é áspero.
…Áspero é o caminho do aprendizado. Muitas vezes a única coisa que mantém o discípulo animado é a fé no mestre, em que só agora reconhece o domínio absoluto da arte: com a sua vida, dá-lhe o exemplo do que seja OBRA INTERIOR, e convence-o apenas com a sua presença.
E por fim quando a técnica é dominada e a tensão (do arco) é libertada sem (a minha) intenção – ALGO dispara. Algo Atirou e Algo Acertou. Inclinemo-nos diante da nossa meta, como se estivéssemos diante de Buda.
…Sob a influência do Zen, A HABILIDADE SE ESPIRITUALIZOU. E é assim que o samurai torna-se cada vez mais indiferente a tudo que possa amedrontá-lo. Através de longos anos dedicados à meditação ele descobre que no fundo, a vida e a morte são uma única coisa, e que ambas pertencem ao mesmo plano do destino. Ele não sente angústia de viver, nem o terror da morte. Apraz-lhe – e isso é característico do espírito Zen – viver no mundo, mas está sempre preparado para abandoná-lo, sem que a ideia da morte o perturbe. Não foi por casuali­dade que o samurai escolheu a flor de cerejeira como o seu símbolo. Assim como a pétala, reflectindo o pálido raio do sol matinal, se desprende da flor, o homem intrépido se desprende, silenciosa e impassivelmente, da existência.
Viver sem medo da morte não significa que, durante as horas felizes, nos gabemos de não tremer diante dela, nem que possamos afirmar que a enfrentamos com segu­rança. Porém, quem domina a vida e a morte está livre de todo temor, a tal ponto que não é mais capaz de experi­mentar a sensação de medo. E quem não conhece, por experiência própria, o poder da meditação séria e "prolon­gada não pode imaginar as vitórias sobre nós mesmos que podemos obter. Seja como for, o mestre verdadeiro revela sua coragem com atitudes, jamais com palavras. Quem o conhece não pode deixar de se impressionar profundamen­te. São raras as pessoas que conseguem manter uma inaba­lável impassibilidade, e que só por isso devem ser chamadas de mestres. Para ilustrar o que acabo de dizer, transcreverei na íntegra uma passagem do Hagakure, datado de meados do século XVII.
«Yagyu Tajima-no-kami (foi neste mestre que Takuan se inspirou para escrever o seu tratado intitulado «A impassível compreensão») era um grande mestre-espadachim e professor do xógum Tokugawa Jyemitsu. Cer­to dia, um dos seus guardas se aproximou de Tajima­no-kami e pediu-lhe que o aceitasse como aluno, ao que o mestre respondeu: “Pelo que vejo, o senhor já é um mestre. Peço-lhe que me diga a que escola pertence, antes que entremos na relação mestre-discípulo”. O guarda observou que se envergonhava de dizer, mas jamais tinha aprendido a arte da esgrima. “O senhor está a brincar comigo? Sou o mestre do venerável xógum e sei que meus olhos jamais se enganam.” O guarda insistiu: “Lamento ofender a sua honra, mas a verdade é que jamais tive qualquer conhecimento desta arte”. Frente a tão segura negativa, o mestre vacilou um momento, ao final do qual disse: “Como o senhor afirma, não vou desmenti-lo, mas segura­mente o senhor é mestre em alguma outra disciplina, embora eu não saiba qual seja”. Respondeu-lhe o guarda: “Pois bem, como o senhor insiste, devo dizer-lhe que existe uma coisa na qual me considero mestre. Quando eu era criança, ocorreu-me a ideia de que um samurai não tem o direito de temer a morte em qualquer circunstância, e desde então lutei continuamente com a ideia da morte, até que ela deixou de preocupar-me. Talvez seja a isso que o senhor se refere”. Mal ouvira tais palavras, Tajima­no-kami exclamou: “Exactamente! Alegro-me que não me tenha enganado, pois o último segredo da arte da espada é atingir a libertação da ideia da morte. Tenho mostrado essa meta a centenas de alunos, mas até agora nenhum alcançou o grau supremo na arte da espada. O senhor não precisa de qualquer treino, porque já é um mestre.»
Se a superação do medo da morte, ou pelo menos o auto-controlo corajoso para enfrentar um perigo mortal, é de máxima importância na formação do samurai, também o é a educação ética e filosófica. E se Budismo já por si imbui os seus discípulos de uma elevada moral, foi o confucionismo que veio estabelecer padrões e comportamentos da nobreza cavalheiresca e por consequência de todo o povo nipónico.
Não importa só, para que se atinja uma Ordem Guerreira, que os seus integrantes não temam a morte, qualquer bandido, pode, e muitas vezes “mais facilmente” ultrapassar esta fronteira usando os caminhos negros da imoralidade, da ausência de escrúpulos e de qualquer farol ético, conseguindo assim na sua vertigem usar, não os sentimentos, mas as emoções mais primitivas para se lançar destemidamente em aventuras escabrosas, no assassínio, no roubo e em todas as violações… o lado negro da força. Ou como Shakespeare lhe chamou: a bravura bastarda.
Recordemos algumas máximas e ensinamentos do grande filósofo chinês.



CONFÚCIO
«Se o príncipe conduz o povo por meio de leis e o mantém na unidade por meio de castigos, o povo se abstém de agir mal; mas não conhece vergonha alguma. Se o príncipe dirige o povo pela virtude e faz reinar a união graças aos ritos, o povo tem vergonha de agir mal e se tornará virtuoso.
Levar o povo à guerra, antes de tê-lo instruído é levá-lo à sua perda.
O homem honroso, mesmo em pensamento, não sai do seu lugar.
O homem honroso espera tudo de si mesmo, o homem de pouco, espera tudo dos outros.
Não se corrigir depois de um erro, eis o erro.
Antigamente, eu passava dias inteiros sem comer e noites inteiras sem dormir, para me entregar à meditação. Colhi poucos frutos. É melhor estudar.
Os verdadeiros homens são sempre mais fortes que a fome que sentem. Os fracos, e somente esses, se entregam ao desfalecimento.
A minha ambição é que os velhos possam viver em paz, que os amigos sejam leais e que os moços amem os mais velhos.
Governar é endireitar o povo.
O homem sábio aspira à perfeição; o homem vulgar, ao bem-estar; o primeiro se preocupa em observar as leis, o outro, em solicitar favores.
Raramente nos perdemos se nos impusermos a nós mesmos, regras severas.
A linguagem deve exprimir com clareza o pensamento. Isto é tudo.»
A filosofia de Confúcio visa a uma organização nacionalista da sociedade, baseando-se no principio da simpatia universal que devia obter-se por meio da educação. Estendia-se do indivíduo à família e desta ao Estado – a grande família.
A piedade filial, que está presente na ética samurai, é talvez a característica mais importante no sistema confucionista. Segundo o confucionismo, a piedade filial requer, em geral, que um filho respeite afectuosamente os pais, proveja as suas necessidades e carências enquanto vivos, e recordem deles o carinho, afeição e o respeito, quando morrerem.
Acima de tudo, porém, requer uma vida nobre para manter a honra e o bom-nome da família. Talvez compreendamos melhor agora porque é que os samurais antes de entrarem em combate, ocasionalmente, referissem com orgulho e a alta voz quem eram, quem era a sua ascendência e o seu clã.
Consideremos assim que a família era para Confúcio o ponto de partida lógico para o desenvolvimento moral e o lar deve ser a escola básica, preparatória das virtudes cívicas.

Rectidão e Justiça
Mencio, discípulo de Confúcio, dizia que a bondade é a alma do homem e que a rectidão ou honradez são a sua vida. Que triste – exclamava ele – descuidar esta via e não segui-la, perder a alma e não saber encontrá-la. A rectidão é um caminho direito e estreito que o homem deve tomar para recuperar o paraíso perdido.
A rectidão é a irmã gémea do Valor, outra virtude marcial. Dizia Confúcio – Saber o que é justo e não o fazer, demonstra ausência de valor. O valor é fazer o que é justo. Assim se define um Cavaleiro que morre e vive defendendo o seu Nobre Ideal. É próprio do verdadeiro valor – viver quando faz falta viver e morrer somente quando faz falta morrer.
Quando o valor atinge a sua cúspide assemelha-se à Bondade, mas como nos diz uma outra máxima – A rectidão levada ao excesso converte-se em dureza. A bondade praticada sem medida degenera em debilidade. Nada em excesso ensinavam os antigos Estóicos.
A Bondade e a Cortesia andam de mãos dadas mas estas não passarão de coisas insignificantes se camuflarem medos ou receios de ofender o outro e daí sujeitarem-se às consequências.
A Paciência e a Resistência prolongada foram também altamente preconizadas por Mencio. Escreve assim – Que esqueças toda a moderação e me insultes, que me importa a mim! Não podeis manchar a minha alma com o vosso ultraje. Noutra vez ensina-nos que – Encolerizar-se por uma ofensa mínima é indigno de um homem superior, mas a indignação por uma grande causa está justificada.

Honra
Não permitas que a ideia de uma vida longa ganhe poder sobre ti, pois de contrário serias capaz de te perder e acabar os teus dias com vergonha.
Se tu morres sem alcançar o objectivo, essa morte pode ser mais inútil que a morte de um cão, a morte da loucura, mas a tua honra não é manchada. Para o Bushido em primeiro lugar está a honra.
O sentimento de honra que implica uma consciência muito subtil do valor e da dignidade pessoal, não podia deixar de ser a característica dos Samurais, nascidos e educados na estima dos deveres e dos privilégios da sua profissão. Ainda que a palavra geralmente usada em nossos dias para expressar a ideia de honra não foi correntemente empregada, a ideia, não obstante, era traduzida por termos tais como «na» (nome), «menmoku» (comedimento) «guai-bun» (atenção exterior), termos que, respectivamente, nos evocam a evolução do termo «personalidade» originária da «mascara grega», em resumo, a «reputação». Um bom-nome é a sua reputação a parte imortal de si mesmo prescindindo do elemento bestial. Conseguir uma boa reputação era um elemento fulcral, e este bom-nome podia (era) ser transmitido, sendo por conseguinte um património de família. Manchar este bom-nome por má conduta ou por receber graves ofensas, levava obrigatoriamente ao sentimento de vergonha, com o qual toda a juventude era educada. Frases (incentivos, estímulos) como: – Não tens vergonha? – Toda a gente te gozará! – Isso não é digno do filho de um samurai. – Aprende a honrar o nome da tua família, etc., faziam parte dessa educação.
Com efeito, o sentimento de vergonha parece-me ser o primeiro signo da consciência moral de uma raça.
Como Mencio havia ensinado – A vergonha é a terra que abona todas as virtudes, as boas maneiras e os bons costumes.
Mas (repetimos) – ofender-se por uma provocação ligeira era ridicularizado como uma falta de domínio sobre si mesmo.

Fidelidade
O desprezo pela morte do samurai, a virtude mais importante do bushido, tem ainda outra raiz doutrinária. Quando o soldado japonês morre, a sua última palavra é uma saudação de veneração ao Micado. “Sua Majestade o imperador, banzai” – Esta é a última saudação com que o soldado japonês morre. Os últimos pensamentos são, portanto, dirigidos para o imperador. O que agita as outras pessoas nos últimos momentos: a vida, o futuro, o lar, a família – tudo isto é substituído no coração do combatente pelo pensamento no Micado. Num velho e conhecido versículo samurai diz-se:
Vais como homem para a guerra:
Três coisas deste mundo
Jamais poderão existir em ti:
O Lar – os teus – a vida!
O Micado é mais que o imperador. Ele é uma divindade. Não é um encarregado de Deus ou um eleito de Deus, ou um sacerdote ou representante de Deus. Ele é o descendente da Rainha do Sol (Amaterasu) e é dotado de autoridade e dignidade divina.
Isto é o Xintoísmo, a religião nativa do Japão, e a terceira, e não menos importante, fonte espiritual do Bushido. É antes de qualquer influência, o componente básico de toda a cultura japonesa. O seu culto remonta aos longínquos anos da chamada Pré-História e estende-se até aos nossos dias, sendo a célula matriz de toda a organização social do povo japonês. Culto ligado à Natureza, o Xintoísmo exprime através de ritos específicos os laços harmoniosos que se manifestam no quotidiano dos homens e na sua ligação ao divino.
E sem nos alongarmos, para no final terminarmos este nosso trabalho com uma notável história de Honra e Fidelidade, expomos alguns contributos do Xintoísmo ao Bushido:
- Fidelidade ao Tenno. Esta implica ao Estado, às instituições, ao povo e ao Japão. Que como já referimos atinge o seu ponto culminante no desejo sublime de “morrer” (dar a vida) pelo imperador.
- O culto dos antepassados. Fisicamente “filhos dos Kami”, os japoneses pressentem o seu parentesco celeste que se traduz, a nível dos clãs pela veneração do deus do nome da família: O uji kami. Daqui também a devoção filial.
- A essência do Yamato, o espírito místico-espiritual do patriotismo nipónico. Criação divina, natureza sagrada do Dai-Nippon.
- O sentimento de pureza. A pureza ritual é um dado capital do Xintoísmo. Daí a quantidade de ritos de purificação que o Bushido impõe ao samurai: Ablução em cascatas, jejuns, ascensão de montanhas, etc.
- O sentimento de sinceridade (shin). Este implica as ideias de verdade, de honradez e de lealdade, mas obriga também o samurai a desprezar o seu interesse pessoal, a ideia do lucro e a apagar as humanas paixões. A estes contributos, é necessário acrescentar o significado sagrado da espada.

O sabre: a alma do samurai
O Bushido fez do sabre o emblema do seu poder e das suas proezas. Desde muito jovem o samurai trinava no seu manejo e se iniciava nos regulamentos da profissão das armas. Aprendia assim a amar o seu sabre, a sentir o seu poder e a identificar-se com ele. Aos quinze anos, idade de emancipação, quando atingia a condição de homem, o jovem samurai jamais saía de casa sem portar visivelmente a sua alma – o seu sagrado sabre.
O que forjava os sabres não era um simples artesão, mas um artista inspirado e o seu atelier um santuário. Todos os dias iniciava o seu labor com uma oração e com a purificação, segundo se dizia: Ligava a sua alma e seu espírito ao aço que forjava e temperava. Cada golpe de martelo, cada têmpera, cada gesto, era assim um acto religioso de grande importância.
E assim se dizia que o samurai «não leva em vão a sua espada, o que leva na sua cintura é o símbolo do que leva em seu coração: Lealdade e Honra.»


 via
http://legiaovertical.blogspot.com/2009/08/sobre-o-bushido.html